A Clareza da Palavra de Deus

Qualquer pessoa que já tenha começado a ler a Bíblia seriamente percebe que algumas partes podem ser bem facilmente entendidas, enquanto outras parecem enigmáticas. Na verdade, bem no início da história da igreja Pedro já lembrava aos seus leitores que algumas partes das epístolas de Paulo eram de difícil compreensão: “Como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe 3.15-16). Precisamos admitir, portanto, que nem todas as partes das Escrituras podem ser compreendidas com facilidade.

A. A Bíblia freqüentemente afirma a sua própria clareza

A clareza da Bíblia e a responsabilidade dos crentes em geral de lê-la e compreendê-la são freqüentemente enfatizadas. Todo o povo de Israel deveria ser capaz de compreender as palavras das Escrituras, e compreendê-las bem o bastante para diligentemente ensiná-las aos filhos. Esse ensinamento certamente não seria mera memorização mecânica, destituída de compreensão, pois o povo de Israel deveria discutir as palavras das Escrituras sentado dentro de casa, nas atividades cotidianas, andando na rua, na hora de ir para a cama ou quando se levantasse de manhã.

B. As qualidades morais e espirituais necessárias para a correta compreensão

Os autores do Novo Testamento freqüentemente afirmam que a capacidade de compreender corretamente as Escrituras é mais moral e espiritual do que intelectual: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1Co 2.14; cf. 1.18-3.4; 2Co 3.14-16; 4.3-4, 6; Hb 5.14; Tg 1.5-6; 2Pe 3.5; cf. Mc 4.11-12; Jo 7.17; 8.43). Assim, embora os autores do Novo Testamento afirmem que a Bíblia em si está escrita claramente, afirmam também que não será compreendida corretamente por quem não se dispuser a receber os seus ensinamentos.

C. Definição de clareza das Escrituras

Para resumir essa matéria bíblica, podemos afirmar que a Bíblia é escrita de forma tal que todas as coisas necessárias para nossa salvação e para nossa vida e crescimento cristão encontram-se bem claramente expostas nas Escrituras. Embora os teólogos às vezes definam a clareza das Escrituras de modo mais estreito (dizendo, por exemplo, apenas que as Escrituras são claras no ensino do caminho da salvação), os muitos textos citados acima se aplicam a vários aspectos diferentes do ensino bíblico e não parecem sustentar nenhuma limitação com relação a temas sobre os quais se pode dizer que as Escrituras não falam claramente.

D. Por que as pessoas compreendem erradamente as Escrituras?

Durante a vida de Jesus, seus próprios discípulos às vezes demonstravam não compreender o Antigo Testamento e os próprios ensinamentos de Cristo (ver Mt 15.16; Mc 4.10-13; 6.52; 8.14-21; 9.32; Lc 18.34; Jo 8.27; 10.6). Embora às vezes isso se devesse ao fato de que eles simplesmente precisavam aguardar eventos futuros da história da redenção, especialmente da vida do próprio Cristo (ver Jo 12.16; 13.7; cf. Jo 2.22), também houve oportunidades em que isso se deveu à sua falta de fé ou dureza de coração (Lc 24.25).

E. O incentivo prático derivado dessa doutrina

A doutrina da clareza das Escrituras, portanto, tem uma implicação prática muito importante e em última instância bastante encorajadora. Ela nos diz que nos pontos em que há desacordo doutrinário ou ético (por exemplo, quanto ao batismo, à predestinação ou ao governo da igreja), só há duas causas possíveis dessas discordâncias:

(1) de um lado, pode ser que estejamos buscando fazer afirmações sobre pontos em que as próprias Escrituras se calam. Nesses casos, devemos estar prontos a admitir que Deus não deu resposta à nossa dúvida, aceitando as diferenças de pontos de vista dentro da igreja. (Isso sempre ocorrerá em questões bem práticas, como os métodos de evangelização, os estilos de ensino bíblico ou o tamanho apropriado da igreja.)

(2) Por outro lado, é possível que tenhamos cometido erros na nossa interpretação das Escrituras. Isso pode ter ocorrido porque as informações que usamos para decidir uma questão de interpretação eram imprecisas ou incompletas. Ou talvez porque haja alguma deficiência pessoal da nossa parte, como, por exemplo, orgulho pessoal, ganância, falta de fé, egoísmo ou mesmo dedicação insuficiente de tempo para ler e estudar as Escrituras com devoção.

F. O papel dos estudiosos

Diante disso, será que os estudiosos da Bíblia e aqueles dotados de conhecimento especializado de hebraico (para o Antigo Testamento) e grego (para o Novo Testamento) ainda têm algum papel a desempenhar? Certamente sim, e em pelo menos quatro áreas:

1. Eles podem ensinar claramente as Escrituras, transmitindo o seu conteúdo aos outros e assim desempenhando o ofício de “mestre” mencionado no Novo Testamento (1Co 12.28; Ef 4.11).

2. Podem examinar novos campos de compreensão dos ensinamentos das Escrituras.

Esse exame raramente (se tanto) envolverá negação dos ensinamentos centrais que a igreja vem sustentando ao longos dos séculos, mas muitas vezes implicará a aplicação das Escrituras a novos aspectos da vida, respostas a perguntas difíceis suscitadas tanto por crentes quanto por descrentes a cada novo período da história e a contínua atividade de aperfeiçoamento e aprimoramento da compreensão da igreja acerca de pontos específicos da interpretação de determinados versículos ou questões doutrinárias ou éticas.

3. Podem defender os ensinamentos da Bíblia contra os ataques de outros estudiosos ou de pessoas dotadas de conhecimento técnico especializado. O papel de ensinar a Palavra de Deus às vezes implica também corrigir falsos ensinos. O cristão precisa ser capaz não só de “exortar pelo reto ensino” mas também de “convencer os que o contradizem” (Tt 1.9; cf. 2Tm 2.25, “disciplinando com mansidão os que se opõem”; e Tt 2.7-8).

4. Podem complementar o estudo das Escrituras em prol da igreja. Os estudiosos bíblicos muitas vezes têm treinamento que lhes permite associar os ensinamentos das Escrituras à rica história da igreja e tornar mais precisa a interpretação das Escrituras e mais vívido o seu significado com um maior conhecimento das línguas e culturas nas quais a Bíblia foi escrita.
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Teologia Sistemática. Wayne Grudem, Edições Vida Nova. Parte 1 - A Doutrina da Palavra de Deus – p. 23 - 96

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