Tornar-se criança

Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele. (Lucas 18:17)

Publicado originalmente em Ultimato Online

Por Ricardo Barbosa de Sousa

Jesus disse que ninguém pode entrar no reino dos céus se não se tornar como uma criança. A imagem que surge na mente dos adultos, quando ouvem esta afirmação de Jesus, é a da pureza infantil, da inocência, da dependência -- virtudes que poucos adultos desejam. Assim, a conclusão lógica a que qualquer um chegaria é que poucos deles entrarão no reino dos céus.

A infância, para muitos adultos, é apenas uma lembrança -- boa para uns, ruim para outros. É raro encontrar um adulto que demonstre interesse, por menor que seja, em ser como uma criança. Os poucos que o demonstram, o fazem por razões românticas, não reais. O interesse do adulto pela inocência ou pureza quase sempre é confuso e infantilizado. É também raro encontrar um adulto que, de fato, queira ser dependente. Pode até querer se convencer de suas limitações, mas dificilmente abrirá mão do controle de seu destino. Ao tomar uma criança como exemplo daqueles que entrarão no reino dos céus, Jesus não tem em mente as imaginações românticas que nós, adultos, temos da infância. Mesmo porque o reino dos céus não será herdado por adultos infantilizados. Maturidade e crescimento são evidências esperadas na vida daqueles que seguem a Cristo.

Ao tomar uma criança como exemplo, Jesus nos ajuda a corrigir uma compreensão equivocada que temos da virtude da humildade. Os discípulos discutiam entre si qual deles seria o maior no reino dos céus -- conversa típica de adulto. No meio desta discussão, Jesus toma uma criança e diz que quem se humilhar como ela -- este, sim -- será o maior no reino dos céus.

Tornar-se criança não é transformar-se em um adulto infantilizado; é aprender o significado da humildade, sem a qual ninguém entrará no reino dos céus. Tornar-se como criança é reconhecer a condição de filho e de filha. Ser humilde como uma criança é reconhecer-se como criatura. A natureza humana frequentemente inverte esta relação. O prazer mais natural de uma criança é agradar seus pais. Humildade é agradar aquele (ou aqueles) a quem amamos. Não se trata de uma virtude que se conquista com atitudes modestas ou com a negação de elogios. Ela se desenvolve na medida em que cresce em nós a consciência de quem somos diante do Criador.

É curioso notar como a fronteira entre a humildade e o orgulho é estreita. Ser elogiado por ter feito algo bom nunca foi um pecado. É legítimo o prazer que sentimos ao agradar alguém a quem amamos. O prazer maior de qualquer cristão será ouvir a voz do Salvador dizer: “Muito bem, servo bom e fiel…” -- um elogio que nos encherá de prazer por termos agradado aquele a quem mais amamos. Porém, o elogio pode se transformar em uma fonte de prazer em si mesmo. Neste caso, não se procura agradar a pessoa amada, mas sentir-se valorizado e importante. O polo é invertido: é a criatura assumindo o lugar do Criador. É neste ponto que o adulto deixa de ser criança e torna-se infantil.

Tornar-se criança significa reconhecer a condição de criatura e saber que nada nos alegra mais do que agradar o Criador. É por isso que Jesus nos ensina a entrar no quarto, fechar a porta, para aprender a orar. Orar em público, faz da oração facilmente um fim. Ouvir elogios dos outros nos faz sentir que somos “bons na oração”, enquanto que orar secretamente no quarto nos leva a experimentar a recompensa que vem de Deus. Aprendemos a orar por causa dele e não por nossa causa. Desejamos agradá-lo e não a nós.

Somente os humildes entrarão no reino dos céus. A verdadeira fé não é fazer grandes coisas em nome de Deus, mas viver de forma a agradá-lo. Não é isto que os pais esperam de uma criança? Tornar-se criança é viver liberto da tirania da vaidade, da busca insana pela autorrealização, da necessidade infantil de ser admirado e reconhecido. Tornar-se criança é experimentar a alegria de viver para aquele que nos criou e agradá-lo.
Quer louvar-te um ser humano, parte minúscula de tua criação. És tu mesmo que lhe dás o impulso para fazê-lo, assim ele se sente feliz ao louvar-te. Pois para ti nos criaste, e inquieto é nosso coração, até que chegue a descansar em ti. (Agostinho, “Confissões”)


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.


Fonte: Revista Ultimato compartilhado no PCamaral

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