Por que o Gospel Conquistou o Brasil??? Parte 2


(2ª parte do texto “Por que o gospel conquistou o Brasil”. Os dois textos não tratam de nenhuma denominação evangélica em particular, mas visualizam um panorama geral da cultura gospel e das igrejas no Brasil em sua interação com a sociedade – para ler a 1ª parte, clique aqui)

A explicação mercadológica

Em tempos de forte consumismo e de transformação da cultura em mercadoria, o modelo industrial necessita tanto de novidades para saciar a demanda quanto de produtos já consagrados feitos com a receita na mão. A receita para o sucesso tem sido a música de “Louvor & Adoração”. É um estilo de melodias e letras simples e refrões repetitivos, mas não foi criado pela indústria fonográfica. Trata-se de um gênero congregacional, feito para o povo cantar. As letras abordam principalmente temas como a grandiosidade de Deus e a paixão por Jesus. A repetição prolongada do refrão é vista como um estímulo ao êxtase ou transe místico – não por acaso, seus críticos chamam esse estilo de “mantra gospel”. A fórmula não passou despercebida e hoje toda igreja tem um ministério de louvor.

A oferta musical é bem variada: do axé ao sertanejo universitário, do pagode ao heavy metal. A diversificação dos estilos acompanha a necessidade de atender às novas demandas musicais e litúrgicas dos evangélicos neste novo século, o que é resultado tanto da valorização dos estilos musicais populares (em oposição à elitização e preconceito musical do passado) quanto da forte interação entre capitalismo e neopentecostalismo.

O combalido mercado fonográfico secular viu que o gospel é um nicho em expansão e com menor índice de pirataria, o que gerou contratações de cantores e bandas evangélicas. Os CDs de “Louvor & Adoração” geralmente são os mais vendidos e alguns de seus cantores se tornaram eficientes garotos-propaganda de marcas e produtos. Sua aura de artista consagrado (alguns são chamados de “levitas”) é alugada à indústria da moda e da sonoplastia, ocorrendo uma fusão de sua imagem religiosa com a marca comercial. A exposição do gospel na mídia aumentou, assim como o lucro das empresas. Boa parte dos evangélicos acredita que a exposição na mídia secular é uma benção para a evangelização do país. O sociólogo Max Weber acreditava que o espírito do capitalismo foi ativado pela ética protestante cuja mentalidade não mais via o lucro como pecado. Enquanto os puritanos norte-americanos de séculos passados trabalhavam para poupar e investir, os cristãos modernos estariam trabalhando para consumir. O teólogo Leonildo Campos avalia que o espírito do capitalismo foi reforçado pela ética neopentecostal cujo paradigma é “consumir não é pecado”.

A explicação midiática

Nos anos 1990, a Rede Globo exibia em seus telejornais algumas imagens polêmicas: um bispo da Record chutando a imagem de uma santa católica, enormes sacos com dinheiro sendo transportados após os megaeventos evangélicos no Maracanã. Mas, para alterar a ordem, nada como uma queda de audiência após a outra. O avanço comercial da Record levou a Globo a mudar a estratégia e hoje a “Marcha de Jesus” é mostrada no Jornal Nacional, artistas gospel cantam no Domingão do Faustão e a emissora divulga megaeventos gospel, como o Festival Promessas. Astros do futebol também demonstram sua fé em entrevistas e comemorações, imprimindo uma imagem de sucesso e jovialidade à religião. A exposição negativa na mídia, em geral, feita de denúncias de enriquecimento ilícito de certos líderes neopentecostais, é contraposta à exibição de imagens das multidões evangélicas pulando e cantando na rua (ainda que muitos evangélicos tradicionais nessas horas morram de vergonha alheia).

Com todo o respeito ao público que participa desses eventos, também é possível perceber que a consequência de megaeventos públicos não é a evangelização, mas sim a demonstração da necessidade de autoafirmação social. Assim como em outras marchas públicas, fica demonstrada uma necessidade de parecer “normal” e de deixar de ser socialmente invisível. Integração à cultura e visibilidade social amparadas pela música de trios elétricos e aparições de políticos. Ser evangélico não é mais ser “crente” no molde tradicional. O novo evangélico celebra sua fé, seu mercado, seu sucesso, seus artistas, sem medo de parecer um fã. À imagem e semelhança da mídia pop, as rádios utilizam o modelo da parada de sucesso para promover um CD e para dar voz ao ouvinte que vota na “melhor” música do dia; troféus gospel são concedidos aos “melhores” do ano. Como na mídia pop, o “melhor” nem sempre é o mais elaborado e profundo, e sim, o mais vendido e escutado. É quando a quantidade ganha ares de qualidade e o sucesso de vendas passa a ser visto como sinal de unção.

A explicação teológica

Os pioneiros evangélicos enfrentaram mato, lama, distâncias e muito preconceito em sua missão de evangelizar o país no século 19 e início do século 20. Alcançada uma alma, esta teria que enfrentar uma bateria de estudos bíblicos em nível de vestibular. Depois, ainda teria que abandonar comportamentos costumeiros, tradições familiares, hábitos alimentares e culturais. Mas poucas igrejas mantiveram o rigor inicial quanto à repressão de costumes. Ou elas se adaptavam à sociedade ou minguavam. As adaptações, antes promovidas na esfera do comportamento e da aparência pessoal, passaram a ser teológicas.

As igrejas neopentecostais surgidas na década de 1970 enfatizavam o exorcismo e o dom de línguas. Várias igrejas neopentecostais nascidas duas décadas depois deram menor importância a programas em que o diabo era protagonista, renunciaram à glossolalia (o falar em línguas estranhas) e aderiram ao discurso da prosperidade e da cura. No campo musical, a retórica enfatiza a exaltação do poder de Deus e a unção espiritual. Há menor apelo à cruz, ao arrependimento, ao sacrifício pessoal. As músicas, assim como os sermões, estão menos focadas em ensinamento didático da doutrina e mais preocupadas em enunciar as fraquezas pessoais que podem ser reparadas por meio do louvor e da comunhão, embora nem sempre por meio da reforma de hábitos e do estímulo ao conhecimento bíblico.

A teologia suscita menor interesse do que o louvor, embora não se possa dizer que isso seja um comportamento exclusivo do nosso tempo. Mas é certo que a ênfase teológica foi atenuada em prol da pregação da convivência pacífica e fraterna. As letras das músicas também perderam a sua capacidade de diferenciar-se teologicamente, o que deu mais espaço para uma poética de clichês e chavões evangélicos (o “evangeliquês”). O desinteresse em aprofundamento teológico ecoa no desinteresse em densidade artística.

Uma música demonstra uma determinada visão teológica. Se esta visão teológica suaviza a doutrina e enfatiza a intimidade com Deus, os compositores farão músicas com tais características. O problema não está no sucesso popular desses caracteres, mas na exclusividade desse modelo teológico-musical. Quando a mídia gospel passa a celebrar “As 10 Mais” no rádio, a indústria, por sua natureza comercial, irá incentivar a criação de canções e grupos que reproduzam o modelo musical que está no topo da parada de sucessos.

Por enquanto, o mundo gospel demonstra uma nítida capacidade de amoldar-se aos modelos seculares de entretenimento e de estratégias musicais e publicitárias. Enquanto a música gospel atenuar sua mensagem de conversão, ela terá livre trânsito na mídia secular e exercerá forte atração no meio evangélico. Se um dia a mensagem for tanto de admoestação quanto de celebração, ou for mais de púlpito do que de trio elétrico, mais de cruz e serviço do que de cds e sucesso, mais inclinada à identidade bíblica do que ao linguajar ecumênico, então as avenidas se fecharão para essa mensagem e o mercado ficará vazio.

Não sei dizer se os evangélicos conquistarão o Brasil descrente para o evangelho, mas certamente já conquistaram o Brasil cristão para o gospel.

Fonte:
Nota na Pauta - Por Joêzer Mendonça
Joêzer Mendonça é músico e doutorando em musicologia na Unesp. 

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